“O PAPEL ACEITA TUDO E O PAPEL HIGIÊNICO É O MAIOR EXEMPLO DISSO”
– Velho dito juridiquês
O número da lei é 12.663/2012, mas pode chamar no Google de Lei Geral da Copa (que vamos chamar de LGC) que acha do mesmo jeito. Ela regula a Copa das Confederações, a Copa do Mundo e, pasmem, a Jornada Mundial da Juventude 2013, que não sei muito bem o que é, sei apenas que não tem nada a ver com futebol e por causa dela o Papa Chicão nº 1 vai vir pra cá. Em todos os países que houve Copa houve Lei Geral, não é porque somos perseguidos que ela foi instituída aqui.
Em primeiro lugar devemos acabar com uma discussão bastante disseminada, que é de que esta lei é um regime de exceção no Brasil e que viola nossa soberania nacional. Na realidade, estas são duas questões diferentes, a excepcionalidade nada tem a ver com a soberania, sendo que apenas a primeira tem como se sustentar e, ainda assim, em termos. Se sustenta porque a LGC de fato muda vários procedimentos estabelecidos nas nossas leis, tais como os que regem o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), vistos de entrada e permissão de trabalho, Estatuto do Torcedor, Código Penal, Código Civil, Código de Processo Civil, enfim, uma aberração que coloca o Brasil de joelhos para se submeter ao que a FIFA quer. Em termos porque está sancionada como lei, o que afasta a exceção levando em conta o termo específico.
Por outro lado, não existe nenhum arranhão na soberania nacional ao aceitar semelhante imbecilidade, pelo contrário. A soberania nacional se refere a que nosso Estado não está submetido a nenhum outro agente externo, é a capacidade de as ordens instituídas por ele mesmo prevalecerem e a LGC passou por todos os trâmites legais para que virasse uma lei. Ela é passageira, vale apenas para estas épocas de invasão da FIFA nas nossas vidas, mas mesmo assim é uma lei, ou seja, este bando de estrume que frequenta nosso Congresso Nacional aprovou tudinho, tá tudo redondo, nos conformes da lei.
Então a FIFA não chegou aqui e simplesmente instituiu uma lei sozinha, ela teve o respaldo dos nossos ditos representantes e isso, por incrível que pareça, é um exercício de nossa soberania e não uma negação a ela. A questão seria muito mais moral do que de legalidade. Mas vamos à lei em si.
O artigo 2º define vários termos que a FIFA usa e que aparecem na lei a todo o momento, tais como o que é uma Subsidiária FIFA (empresa aberta por ela mesma e que a representa aqui), Emissora Fonte da FIFA (Globo), CBF, Copa do Mundo, etc. Chove no molhado apenas para deixar claro o que é o que para ninguém ter brechas legais futuramente.
Existem dois incisos deste artigo que valem ser lembrados, que é o VI e o XIV. No primeiro é definido o que é considerado um Evento pela FIFA, e lá estão desde palestras, workshops, seminários, cerimônias de abertura até as partidas de futebol e treinos. Traduzindo: tudo que cheirar a futebol é da FIFA. Especial crédito para a alínea “e”, que diz que serão eventos oficiais, além destes já citados, “outras atividades consideradas relevantes…”. Consideradas por quem? Eis a questão.
No inciso XIV são definidos o que serão os Locais Oficiais de Competição. Meus amigos, um Local Oficial de Competição será: estádios, centros de treinamento, centros de mídia, centros de credenciamento, áreas de estacionamento, áreas para a transmissão de Partidas, áreas oficialmente designadas para atividades de lazer destinadas aos fãs, localizados ou não nas cidades que irão sediar as Competições, bem como qualquer local no qual o acesso seja restrito aos portadores de credenciais emitidas pela FIFA ou de Ingressos.
Pois é, cuidado que você pode estar neste momento em um Local Oficial de Competição. A FIFA define o nome do chão que você pisa, quiçá urina.
Simulação de como ficará o estádio do Corinthians. Local Oficial de Competição privado mas pago com dinheiro público.
Indo mais à frente, nos artigos 3º ao 10º que tratam “Da Proteção Especial aos Direitos de Propriedade Industrial Relacionados aos Eventos”, temos o seguinte quadro:
Para registrar uma patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) qualquer mero mortal deve apresentar uma série de documentos, fazer pesquisas, pagar taxas e ainda esperar 5 anos para consegui-la. A FIFA está livre de todos estes “estorvos”. Para ela basta apresentar uma lista e deverá obter uma resposta praticamente imediata, além de não pagar nada.
O artigo 11 trata do tema que mais gerou discussões: áreas de restrição comercial. Veio daí a revolta de todo e qualquer ambulante do Brasil por não poder vender seus produtos nas imediações dos estádios. Só que é muito pior que isso.
O que este artigo autoriza a FIFA a fazer?
Autoriza, EXCLUSIVAMENTE, a divulgar marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos Locais Oficiais de Competição, nas suas imediações e principais vias de acesso. Lembra dos famigerados Locais Oficiais de Competição? Pois então.
Qual é o limite desta bolha capitalista?
Perímetro máximo de 2 quilômetros dos Locais Oficiais de Competição. Olha eles aí de novo.
E quem já tem um estabelecimento dentro desta área?
Gentilmente, foi autorizada à pessoa que já tenha qualquer tipo de comércio nesta área que funcione regularmente, DESDE QUE sem qualquer forma de associação aos Eventos FIFA. Lembra dos Eventos FIFA?
Portanto, não é apenas no entorno dos estádios que as pessoas não poderão trabalhar, é de todos os Locais Oficiais de Competição.
Cachorro-quente vendido dentro dos estádios, ruim e caro. Do lado de fora nada de comida de rua.
Tá com raiva da FIFA? Calma que vai piorar bastante.
Os artigos 12 ao 15 falam da titularidade de direitos sobre o evento, tempo de retransmissão e outras coisas, nada muito além do normal.
Já os artigos 16 ao 18 são uma piada na pior acepção da palavra. Eles tratam das sanções civis, ou seja, indenizações, dinheiro que deverá ir para a FIFA. Óbvio que a FIFA não ia apenas proibir as pessoas de trabalhar nos arredores dos Locais Oficiais de Competição. Ela resolveu instituir punições aos perigosos transgressores.
Para resumir, você não poderá fazer nenhum tipo de comércio e publicidade naquele raio de 2 quilômetros dos Locais Oficiais de Competição ou vincular algum produto ou serviço à Copa porque estará sujeito ao pagamento de uma indenização que englobaria o que a FIFA deixou de lucrar com a sua “intromissão” na área dela, mais qualquer lucro que você tenha tido, além de outros danos que possam ser identificados depois.
Isso aí é um pouco relativo não acham? Como estabelecer o valor desses “danos” da FIFA? Ela mesma definiu no artigo 17. Se não for possível saber quanto de dinheiro você recebeu ‘ilegalmente’ (a lei diz isso literalmente) ou quanto a FIFA deixou de lucrar, é tomado como base o valor que os autorizados por ela pagaram para poder fazer aquilo que você não pode.
Se você tem um bar que vai passar o jogo e você cobra ingresso por isso, esta é uma violação da lei e, seguindo tal lógica, vamos tomar como base quanto a Globo pagou para ter o direito de transmissão.
Se você ta lá vendendo cerveja do lado do estádio com o seu isopor você cometeu uma infração. Se não der pra te ferrar pelo método simples será levado em conta o que a Ambev (dona da Budweiser) pagou para poder ter a exclusividade na venda de cervejas.
Acho que deu pra entender né?! Não é piada, é sério isso mesmo.
No artigo seguinte, o 18, consta que os produtos apreendidos serão doados a instituições de caridade após a remoção dos símbolos oficiais da FIFA (o tatu lá, brasões, essas coisas). Porém, eles podem também ser destruídos. A solução entre a destruição e doação cabe a quem? Ela mesma, a FIFA. Tenho sérias dúvidas do que será escolhido, mas veremos.
Fuleco e Fuleiro, bichinhos da Copa
Artigos 19 ao 21 falam de vistos pra entrada no Brasil e permissões de trabalho, nada muito digno de nota.
Nos artigos 22 ao 24 está escrito que o Estado brasileiro pagará indenização pelos danos que causar à FIFA. Até aí nada muito excepcional, você causa um dano a alguém, por mais que seja uma empresa privada arquimilionária, e deve pagar por isso. É o conformismo legalista.
O problema vem logo na sequência, quando é dito que O ESTADO BRASILEIRO RESPONDERÁ FINANCEIRAMENTE, TAMBÉM, PELOS DANOS QUE A FIFA CAUSAR. É isso mesmo. Se você sofrer algum dano em um local dito FIFA (que abrange milhões de coisas, como dito antes), quem paga é o Estado. E o Estado paga como? Com o nosso dinheiro amizade.
Injusto? Que nada. No artigo 24 diz que o Estado pode contratar seguro para a cobertura de riscos. Vai pagar um seguro com o nosso dinheiro para garantir a cobertura de indenizações geradas por erros da FIFA, fica tranquilo.
A venda de ingressos é regulada pelos artigos 25, 26 e 27. Lá fala que serão quatro categorias de ingresso, sendo que pelo menos 300.000 ingressos de categoria 4 (mais baratos) deverão ser comercializados na Copa.
Consta também que haverá meia-entrada para estudantes, idosos e participantes de programas de transferência de renda, e ainda que os indígenas e quem aderir à campanha de desarmamento, que será feita na época dos eventos, terão uma carga de ingressos destinada a eles. Além de não entender direito isso aí dos indígenas e portadores de arma, duvido que vá acontecer.
O artigo 28 fala das condições de acesso e permanência nos Locais Oficiais de Competição (olha eles de novo). Na realidade, este artigo é uma cópia do artigo 13-A do Estatuto do Torcedor (portanto nenhuma novidade para nós) com apenas duas disposições a mais. Uma delas diz o seguinte: é ressalvado o direito constitucional ao livre exercício de manifestações e à plena liberdade de expressão em defesa da dignidade da pessoa humana. Verdade?
http://www.youtube.com/watch?v=HKLrnhUhI8s
http://www.youtube.com/watch?v=zu7yenofjuE
Acho que não.
O 29 fala das campanhas sociais que vão ter.
Do 30 ao 36 estão as disposições penais. Preparados?
Piratear produtos FIFA (licenciados no INPI que citei dos artigos 3º ao 10º), aí incluídas todas as formas da cadeia de produção, como fazer, vender, distribuir, importar, etc. – detenção de 3 meses a 1 ano ou multa.
Vincular marca ou produto aos eventos FIFA fingindo ser autorizado por ela – detenção de 3 meses a 1 ano ou multa.
Expor qualquer marca/produto não autorizado pela FIFA nos locais dos Eventos (aqueles tratados no começo) – detenção de 3 meses a 1 ano ou multa.
(Veja aqui a diferença entre detenção e reclusão)
Todos estes crimes tem validade até 31 de dezembro de 2014. A discussão que isso gera, além da instituição de crimes que não existem no nosso ordenamento nestes termos específicos, é que uma pessoa poderá continuar a ser ré em uma ação penal mesmo passada a eficácia da lei. É você ser julgado e, talvez, condenado por um crime inexistente, é absurdo. Isso vai dar muito problema mais para frente.
Os artigos 37 ao 50 falam de prêmio em dinheiro e auxílio especial para os jogadores campeões em 58, 62 e 70. Além de uma possível necessidade dos jogadores destas épocas (fora a anta rica do Pelé), não se sabe o motivo disso estar na lei.
Chegamos à parte final da Lei Geral da Copa, os artigos 51 ao 71. No 51 aparece um tipo de intimação do Estado para responder ações que não existe em nossos códigos. No artigo 53 fica estabelecido que a FIFA é isenta de qualquer tipo de pagamento para que as ações em que ela esteja envolvida tenham andamento. Esse ponto é inacreditável e apenas demonstra que a FIFA espera que sejam muitas as ações em que estará no meio.
O artigo 55 diz que o governo poderá disponibilizar os serviços de telecomunicações necessários para que os Eventos FIFA (aqueles mesmos) ocorram, sendo que é dispensável a licitação para que tal serviço seja realizado. Uma forma institucionalizada de roubar mais um tanto.
No 56 é dito que pode ser declarado feriado nos dias de jogos da seleção. No 57 que os serviços voluntários na Copa não geram vínculo de emprego. No 63 é falado, finalmente, sobre a tal Jornada da Juventude, onde serão aplicados os mesmos termos de emissão de visto e ausência de vínculo de emprego pelo trabalho voluntário. No 64 fica estabelecido que os sistemas de ensino DEVERÃO ajustar os calendários para que as férias calhem com a Copa.
Eu deixei para falar do artigo 54 agora para o final. Nele fica claro um dos motivos de todo o quebra pau que vimos nos arredores dos estádios pelo Brasil. Lá está determinado que o Estado COLABORARÁ para que os Locais Oficiais de Competição (os tais locais sendo citados novamente) estejam disponíveis para uso EXCLUSIVO da FIFA. Entendeu agora? Claro que não vimos tanta incompetência governamental e violência policial apenas por este motivo – pois ambos são um lixo com ou sem FIFA -, mas que é um ponto a mais que reforça o caráter ditatorial da lei isso é.
Corruptos públicos e privados. O povo apanha enquanto eles lucram.
A Lei Geral da Copa não traz qualquer benefício para nós, apenas obrigações. Já a FIFA não tem obrigação nenhuma, apenas benefícios. Porém, esta mesma FIFA não nos enfiou goela abaixo a Copa do Mundo e das Confederações. Ambas são um produto desta empresa e todos os países que se candidatam a sediar tais eventos já sabem que vão ter de se ajoelhar para ‘a dona do futebol’. Apenas a Colômbia não ajoelhou. Correr atrás para sediar uma Copa é uma escolha política, assim como investir bilhões em estádios e não em outras áreas. A FIFA impõe as diretrizes para que seus eventos sejam realizados e a forma de condução é do país sede. A FIFA tem milhões de motivos para ser xingada, mas sediar a Copa foi escolha dos nossos governantes.
Se as obras relacionadas à infraestrutura tivessem sido realizadas, haveria algo de palpável ao povo, mas não é o caso. Estes parasitas, que se reúnem em nome do Poder Legislativo e Executivo, acharam que nós engoliríamos, mais uma vez, histórias mirabolantes de “legado da Copa”, quando apenas roubariam nosso dinheiro tomando champanhe nos camarotes das Arenas Multiuso superfaturadas. Enganaram-se.
Nossa cultura torcedora está sendo aniquilada pela construção das tais Arenas. Pessoas são expulsas de suas casas por conta destas mesmas obras. Nosso dinheiro está sendo gasto na construção de estádios (alguns particulares). A FIFA vai arrombar nossa sociedade e irá embora muito mais rica. Os políticos continuarão rindo da nossa cara. A polícia continuará nos batendo. A Lei Geral da Copa é só mais um elemento que demonstra o descaso a que somos submetidos e que gerou a precarização dos sistemas político e social, culminando em uma revolta de nível nacional que explodiu no colo dos marajás, que agora correm nos três dias que trabalham na semana para tentar reverter o prejuízo. As ruas responderam o que achamos da lógica corrupta de nosso governo e já se ouve aqui e ali: NÃO VAI TER COPA!