Entrevista com Ivo Herzog (por Raphael Sanz)
Recentemente foi descoberta uma ligação entre o presidente da CBF, José Maria Marin, e o assassinato do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI CODI, em 1975. Na época, Marin era deputado estadual pela Arena, partido central da ditadura, e fez uma série de discursos contra a TV Cultura, onde Herzog era diretor de jornalismo, afirmando que a sociedade paulistana estava apavorada com o conteúdo veiculado pela emissora e pedindo a cabeça de Herzog. E foi exatamente o que aconteceu. Após ser procurado, Vladimir Herzog se apresentou às autoridades, e acabou assassinado nos porões da tortura.
Ivo Herzog, 46 anos, filho do jornalista executado pelos militares, hoje cuida da fundação que leva o nome do seu pai e trabalha em prol dos direitos humanos e do direito à memória. Junto ao baixinho Romário, hoje deputado, Ivo criou a petição que pede a saída de Marin das presidências da CBF e do Comitê Organizador da Copa do Mundo, reivindicação que ganhou coro na sociedade.
Por uma questão de afinidade com a causa, a Frente Nacional dos Torcedores (FNT) entrou nessa e está organizado um grande ato em Porto Alegre, seu principal reduto atualmente, na próxima sexta-feira e, sendo assim, nos pediu gentilmente que fizéssemos uma entrevista com Ivo Herzog sobre Marin, dos rumos do futebol e da sociedade brasileira em geral e da relação do atual embaixador da Copa do Mundo com a morte do seu pai nos terríveis anos da ditadura. Essa entrevista você confere abaixo, na íntegra.
Raphael Sanz – Bom, meu caro Ivo Herzog, vamos conversar um pouco sobre aquele senhor que é atualmente o presidente da Confederação Brasileira de Futebol e embaixador da Copa do Mundo no Brasil. Quando foi a primeira vez que você ouviu falar dele?
Ivo Herzog – Eu ouço falar dele desde sempre, isso se perde no tempo. Porém, ele ligado ao futebol realmente foi só na época em que o Ricardo Teixeira saiu da presidência da CBF, eu não tinha ideia de que ele fosse vice presidente da Confederação Brasileira de Futebol.
RS – Bom, então qual era a ocupação dele antes desse envolvimento com o futebol?
IH: Não sei qual é a ocupação dele, mas vejamos que na década de 80 ele foi vice-governador do Estado de São Paulo, quando o governador era o Paulo Maluf. Então, isso pra mim, isso já é um atestado de que a pessoa não é do bem.
RS – E qual é a relação direta do José Maria Marin com a tua vida?
IH – O que a gente descobriu recentemente, no ano passado, através de uma reportagem do Juca Kfouri, é que até antes de ele ser governador, lá atrás, na década de 70, ele foi deputado estadual pela Arena. E naquela época, em 1975, o meu pai foi assassinado. Duas semanas antes do meu pai ser assassinado, ele fez um discurso na assembleia instigando que havia coisas terríveis acontecendo na TV Cultura, que a população paulistana não estava conseguindo dormir tranquila e que o governo tinha que fazer uma ação contra a TV Cultura. O meu pai era o diretor de jornalismo da TV Cultura e o governo realizou a ação: matou meu pai. Depois, na sequência, um ano após a morte do meu pai, em outubro de 1976, Marin voltou à tribuna e fez longos e bastante elaborados elogios ao chefe da policia secreta do governo na época, a polícia que prendia, torturava e matava – o Sérgio Fleury. Ele é uma figura terrível, temida, uma das piores coisas que já existiram na nossa sociedade. E o Marin deixou bem claro em seu discurso que o Fleury era um exemplo a ser seguido, era um herói. Então é complicado que hoje a gente tenha essa pessoa encabeçando a Copa do Mundo de 2014.
RS – Pegando esse gancho do discurso do Marin, que transformou o Fleury em herói, você vê algum paralelo com o que acontece hoje em dia em São Paulo, ou seja, essa nova militarização que aconteceu por aqui, até pouco tempo atrás os militares estavam nas nossas nas subprefeituras?
IH – Não sei, nunca parei para pensar sobre isso. Eu acho que há uma outra questão que a gente deve sim parar para pensar e refletir. Essa sim tem uma relação com a história de violência que vem desde a época da escravidão e do extermínio dos índios, é a violência policial. Hoje o principal executor, o principal assassino não é o bandido, é a polícia. A policia mata de 8 a 10 vezes mais do que os bandidos na nossa cidade, então sim existe uma cultura da violência e da impunidade e a gente vê essa cultura presente muito na maneira como a nossa polícia age. Isso tem um paralelo muito forte com a época da ditadura.
RS – Você acredita que afastando o Marin da CBF nós talvez conseguíssemos dar um golpe nessa cultura da impunidade?
IH – Não. Acho que isso é pouco. Mas vamos separar as coisas. O Marin hoje está na frente de duas coisas: da CBF e da Copa do Mundo. Meu maior problema com ele é em relação com a Copa do Mundo, porque o Mundial não é dele, não é da CBF, é de todos nós, né? É um evento internacional, um evento de grande festa, grande alegria, feito com muito dinheiro público e a gente tem à frente desse evento uma pessoa que simboliza tudo aquilo que nós lutamos contra. O arbítrio, a violência, a ditadura… ele simboliza isso tudo. Não só nós no Brasil, mas vários outros países, né? Toda a América Latina, a Europa pela questão do nazismo, da Segunda Guerra Mundial, aquela coisa toda, então da mesma maneira que eu estou indignado quando dou entrevistas para jornais de fora do país -da América Latina e da Europa-, eles também não conseguem entender como o Brasil, em plena democracia consolidada, quase 30 anos de democracia, tem uma pessoa como o José Maria Marin à frente do maior evento internacional de toda sua história. Ninguém consegue entender isso. Inclusive é a primeira vez na história das Copas do Mundo que o presidente da confederação é também o presidente do comitê organizador. Tradicionalmente, a pessoa que está à frente do comitê organizador é um ex atleta, uma pessoa que é uma um grande embaixador, uma pessoa de aprovação unânime, um ídolo daquele país. Será que o Marin é ídolo de alguém?
RS – Saindo um pouco da Copa do Mundo e caminhando em direção à Comissão da Verdade: qual é a importância de se investigar os crimes cometidos pela ditadura?
IH – Você deve ter mais ou menos uns vinte anos a menos do que eu. Você hoje saiu de “não sei onde” e veio para cá. Você veio pensando no ônibus, no trem ou no metrô. Pensando nas coisas que existem. Provavelmente pensou que muitas coisas poderiam ser diferentes. E por que as coisas são do jeito que são? Por que o presente é o presente? O presente é o resultado do passado. O presente agora (do momento da entrevista) é resultado do telefonema que você me deu no passado. Por isso que estamos aqui agora. Na nossa sociedade que é uma coisa mais complexa e maior, com uma intensidade muito maior de coisas, somos o resultado de uma longa história. E a gente só entende esse presente – porque as coisas são desse jeito- , se a gente conhecer o nosso passado. E enquanto vamos nos falando, você provavelmente já está pensando em como irá editar essa reportagem, onde irá publicá-la, o que vai fazer com ela, ou seja, está pensando no futuro a partir do que está entendendo do presente. E o seu presente é fruto do passado. Sendo assim, não tem como você construir um futuro sem ter conhecimento sobre o passado, ele é construído a partir dos conhecimentos que você tem da vida, das coisas e dos fatos. Hoje, de maneira geral, as pessoas têm muito pouco conhecimento sobre a nossa história recente. Então, o entendimento que eles têm sobre o presente é em função do pouco que conhecem e em função disso eles montam uma ação, que pode ser qualquer coisa, não necessariamente organizar uma passeata, mas por exemplo discutir política na mesa do boteco tomando um chopp, dando opinião sobre um filme, qualquer coisa. Tudo o que a gente faz tem um caráter politico, da vida na “polis,” na cidade, então tudo isso que as pessoas estão fazendo é em função do conhecimento delas e, o conhecimento em relação à nossa história, é muito pouco. A Comissão Nacional da Verdade é um instrumento para conhecermos um pouco mais desse passado, para entender um pouco mais do nosso presente e assim exercer a nossa cidadania de uma maneira mais consciente. Um passo muito importante, mas que é apenas um passo, uma etapa, só que esse processo é muito mais complexo. Acho que tudo começa com uma melhoria no sistema de ensino. Ensinar a nossa historia recente, os direitos humanos, no ensino fundamental, no ensino básico, mostrar para as pessoas certos valores. Questões como armas, pena de morte, casamento entre pessoas do mesmo sexo, independente da opinião que você tenho sobre elas, mas todas essas questões, elas são os seus valores como cidadão. Eles são muito importantes. Uma democracia deve possuir uma diversidade enorme de valores. O que é importante é que você tenha os seus valores e se sinta seguro com eles, e que nós possamos construir os nossos valores através das informações a que temos acesso. Por exemplo, muita gente é a favor da pena de morte. Eu, particularmente, sou contra e acho que tenho uma opinião relativamente bem formada a respeito do tema, eu sempre tive muito interesse em saber mais a respeito, li muito, me informei muito e vejo que em nenhum lugar onde foi adotada, a pena de morte conseguiu resolver o problema da violência. Inclusive um dos países onde há um número enorme de assassinatos é o próprio Estados Unidos, onde a pena de morte é vigente. Então, a gente vê que não é esse o caminho. Enfim, todas essas questões são muito complexas, mas o mais interessante, o mais gostoso e o mais fascinante de viver é a gente ter informações para podermos construir nossos valores com consistência, ter uma boa opinião e falar com orgulho o que pensamos. Lembra daquele ditado, você já deve ter ouvido falar, “religião, política e futebol não se discute.” Se discute e se discute muito. Futebol a gente não para de discutir, então por que não podemos discutir religião e politica também?
RS – Só uma curiosidade, você gosta de futebol?
IH – Gosto.
RS – Para que time você torce?
IH – Corinthians.
RS – Voltando à questão da discussão, da vida na polis e de que futebol, política e religião são discutíveis, o que você acha da Frente Nacional dos Torcedores que visa não só discutir a questão do “Fora Marin” levantada por você e pelo deputado Romário, mas como também realizar um certo de ação a respeito disso?
IH – Eu acho super importante, eu acho que o debate sempre agrega e ele é a essência da polis e da vida em sociedade e democrática. Sou a favor desde que não haja violência. Eu não justifico a violência a partir de nada. Ou seja, se o Marin é violento, é estúpido, vem e dá com o porrete na sua cabeça, chama a polícia e manda prendê-lo, não revide. Não se pode usar a violência como uma forma de argumento e nem de contra argumento. Quem faz isso são eles, não somos nós. Eu acho interessante esse movimento de vocês e acho que uma coisa que pode enriquecer o movimento é se vocês conseguissem abranger esse movimento se unindo a outros movimentos e a outros debates que são importantes. Por exemplo: você conhece o estatuto da CBF?
RS – Não.
IH – Pois é. Eu também não. Essa é uma questão na qual devemos brigar. Se a CBF leva tanto dinheiro público, por que o estatuto dela é secreto? Na internet até tem umas cópias piratas do estatuto. Em uma delas, diz que a CBF é uma fundação sem fins lucrativos. Bom, se é sem fins lucrativos, por que então eles dão cheques entre R$ 100 mil e 400 mil para os cartolas das federações estaduais de futebol? Alias, como é que é feita a escolha desses cartolas todos? Aliás, tem outra coisa que seria interessante ser feita para fortalecer esse movimento, que seria a criação de um grupos de estudo sobre o nosso futebol. Eu acho que tem uma riqueza do ponto de vista político maravilhosa. O futebol no Brasil e em outros países da América Latina sempre foi usado como uma cortina de fumaça para governos que queriam esconder as suas fraquezas politicas. Por exemplo, a Copa na Argentina de 1978. No final, era uma ditadura que já estava indo para o beleléu, estava indo para o saco, e eles fizeram de tudo, mexeram em alguns jogos, porque a Argentina tinha de ser a campeã. Nesse processo de euforia do povo, por um breve momento as pessoas esquecem que não têm comida, não têm saúde e isso continua sendo usado. Lógico que a sociedade evoluiu em diversos aspectos, hoje temos uma democracia, um estado de direito, onde é possível até tirar um presidente da república como a gente fez com o Collor, mas na área do futebol muito pouca coisa mudou. São grupos muito estranhos com ideologias políticas muito complicadas, e eu acho que cabe e seria muito importante envolver os jogadores e os técnicos a começarem a opinar sobre política. Afinal, eles são os ídolos das pessoas, por que eles não podem opinar sobre as coisas? Por que eles só ficam com aquelas entrevistas plásticas de final de jogo que não falam nada com nada e não falam o que estão achando. O quê eles acham do Marin? Sabe, o silêncio é a conivência.
RS – Está faltando um doutor Sócrates?
IH – Não foi só o Sócrates, foi um processo na verdade. Foi todo um grupo que subiu ao palanque pedindo eleições diretas. Na época eram jogadores do Corinthians, mas depois foram jogar em outros times, portanto não tem nada a ver com o Corinthians, eram Sócrates, Casagrande e sei lá mais quem, mas enfim, eles são cidadãos, eles têm a obrigação de fazer isso e o não fazer, que é o que acontece hoje em dia, é uma conivência, uma cumplicidade com um sistema que eu pelo menos acho que está errado. Cada um pode achar uma coisa, enfim. Falando sobre questão do torcedor, eu gosto, sou torcedor, meu filho também adora futebol, a gente vai muito aqui no Pacaembu e a maneira como tratam a gente, torcedor, é… você vai comprar ingresso e nunca sabe se vai poder usar cartão de crédito, dinheiro, ou não vai. Para comprar meia entrada para o meu filho, tenho que adivinhar que documento eles vão pedir, porque na verdade eles fazem de tudo para te impedir de comprar a meia entrada, aí você chega no dia do jogo e enfrenta um cerco policial, parece uma praça de guerra e você tem que parar o carro “não sei a onde”, andar um monte… Não posso ir para lá de carro? Cadê esse conflito todo? Eu estava vendo agora os jogos da Champions League e eles têm bandeiras nos estádios e as bandeiras dos estádios faz tempo que eles tiraram daqui de São Paulo, uma coisa tão bonita. Ou seja, nós somos tratados como uns criminosos, nós somos tratados assim por aqueles que em muitos casos são os próprios criminosos.
RS – O que você tem a dizer, além do que foi dito, aos torcedores de todo esse país, que estão indo atrás desse movimento, do Fora Marin, que mensagem você ainda gostaria de passar para esse pessoal?
IH – A única forma da gente mudar as coisas é fazendo alguma coisa, então para mudar o futebol brasileiro, a gente só depende de mim, de vocês e desses torcedores, depende de cada um de nós colocarmos para fora a nossa indignação. Se ficarmos esperando que as coisas mudem sozinhas, elas não vão mudar.
RS – Bom, vamos supor: num mundo ideal, daqui dois meses, José Maria Marin estará afastado do Comitê da Copa do Mundo e da presidência da CBF. O que o futebol brasileiro tem a ganhar com isso?
IH – Dignidade. Eu acho que o Marin não tem dignidade para nos representar em absolutamente nada que leve o nome do nosso país, ele sempre foi um inimigo a ser combatido.
Leia também:
- Matéria da agencia A Publica que explica muito bem a história de Vladimir Herzog com Marin em 1975: http://www.apublica.org/2013/02/qual-papel-chefao-futebol-brasileiro-assassinato-de-herzog/
- Site da Frente Nacional dos torcedores: http://www.frentedostorcedores.com.br/
- Fundação Vladimir Herzog: http://www.vladimirherzog.org